O Karma...
Se estiver a considerar a frequência das aulas no Padma Yoga Shala🪷🍃, por favor verifique primeiro que ressoa com estes princípios e que se sente disposto a praticá-los com o mesmo interesse e dedicação que as posturas (āsana). Eles constituem a base e as fundações do Yoga, assim como de toda a estrutura energética e vibratória da prática, das aulas e do próprio espaço.
Namaste
Patañjali diz-nos no Yogasūtra II, 12 que os kleśa (as causas de aflição) são a causa subjacente ao karman que geramos através dos nossos pensamentos, dos nossos desejos e das nossas acções.
Yogasūtra II.12
क्लेशमूलः कर्माशयो दृष्टादृष्टजन्मवेदनीयः॥१२॥
kleśa-mūlaḥ karma-aśayo dr̥ṣṭa-adr̥ṣṭa-janma-vedanīyaḥ ॥12॥
«As latências das acções enraizadas nas causas de sofrimento, são vivenciadas agora ou mais tarde.».
O termo sânscrito Karman (1) deriva da raiz verbal kṛ, que significa fazer. Segundo Swāmi Vivekānanda, designa a acção, mas de um ponto de vista técnico, designa igualmente as consequências das acções e de um ponto de vista metafísico, designa por vezes os efeitos causados pelas nossas acções passadas (2).
O dicionário “Sanskrit Heritage Dictionary” de Gérard Huet (3), diz-nos que o karman é um acto, uma acção ou uma obra, pode também ser um facto, uma execução ou uma operação, uma cerimónia ou um sacrifício, uma ocupação, um trabalho ou uma profissão e pode mesmo ter o significado de destino. Do ponto de vista filosófico, pode ser visto como a acumulação de méritos e deméritos ao longo das existências passadas, uma influência ou retribuição de acções anteriores. O seu significado está igualmente associado às noções de actos divinos e obras santas.
A Lei do Karman constitui uma das fundações da filosofia hindu e está intimamente ligada ao princípio da reencarnação. O karman, tal como Patañjali nos mostra neste sūtra, é produzido pelo “desejo e pela ignorância metafísica (avidyā)” (4), faz com que o homem se encontre prisioneiro do saṃsāra, destinado a nascer, morrer e renascer inúmeras vezes. O processo de transmigração da alma não se efectua de forma aleatória, mas sim de acordo com a Lei do Karman e conforme ao Dharma.
Yogasūtra II.13
सति मूले तद्विपाको जात्यायुर्भोगाः॥१३॥
sati mūle tad-vipāko jāty-āyur-bhogāḥ ॥13॥
«Enquanto essas raízes existirem, elas vão influenciar nascimento, longevidade e experiência.».
O hindu acredita que a Lei do Karman é a lei da acção que determina a nossa condição actual e que todas as acções efectuadas produzem o seu efeito no mundo e criam no interior do indivíduo que as faz, vāsanā e/ou saṃskāra, influências importantes e muitas vezes determinantes da base das suas condições e acções futuras. Os vāsanā são traços deixados em estado latente no mental pelas acções e experiências passadas, que tendem em seguida a organizar-se em saṃskāra, construções mentais inconscientes, verdadeiras reservas de latências enterradas no mais profundo do subconsciente. Têm a sua origem na memória e possuem uma enorme influência tanto no fluxo psico-mental, que alimentam em permanência, originando constantes movimentos da consciência, como no condicionamento do carácter específico de cada indivíduo, tanto no que diz respeito à hereditariedade como à situação kármica de cada um. Podem apresentar-se como um dom ou uma capacidade extraordinária para realizar certas actividades, mas também podem manifestar-se como obstáculos, medos ou bloqueios.
Segundo a Lei do Karman, cada acção é portadora de consequências e essas consequências vão surgindo ao longo das múltiplas reencarnações em cada ciclo cósmico. Assim, segundo esta lei, a condição actual de cada indivíduo é determinada com base nas suas acções passadas, nos actos cometidos nesta e em todas as existências precedentes durante o mesmo ciclo cósmico. Da mesma forma, todas as suas acções presentes vão determinar as condições do resto da sua vida, mas também de todas as suas encarnações futuras, já que as consequências dos actos cometidos ao longo de uma encarnação, devido a inúmeras interferências, não se produzem necessariamente durante essa mesma existência. A única certeza para o hindu é que mais tarde ou mais cedo, nesta ou noutra vida, será confrontado às consequências das suas acções passadas.
A noção de karman é, por esta mesma razão, indispensável à tomada de consciência das consequências das acções : “se o homem sente que toda e qualquer decisão de ordem moral tem uma importância extrema, que qualquer acto que cometa vai ter consequências cuja influência se exercerá sobre toda a natureza do seu ser, agora e no futuro, ele pensará sem dúvida duas vezes antes de viver uma vida imoral. A salvação reside na iluminação ; a moralidade ajuda a alcançá-la. Quem não age de forma moral está condenado ao saṃsāra” (5). O nosso karman determina o que precisa ser equilibrado de um ponto de vista energético e também o que podemos assimilar, mostra-nos que somos responsáveis pelo que somos, mas também que temos a possibilidade de nos transformarmos, através das nossas acções, no que acreditamos que podemos ser.
Além do mais, a Lei do Karman pode ajudar-nos a manter a motivação nos momentos mais difíceis. Por vezes, apesar dos nossos inúmeros esforços, ficamos com a sensação que dificilmente conseguiremos colocar em prática o que nos parece tão simples em teoria. Os nossos esforços parecem-nos, assim, completamente inúteis… A confiança na Lei do Karman ajuda-nos a manter a Fé e a Coragem, a acreditar que todos os nossos esforços são válidos e que mesmo que os resultados não sejam visíveis a curto prazo, o que não conseguimos atingir nesta vida, talvez consigamos atingir na próxima, ou pelo menos, estaremos mais bem preparados para o conseguir. Ao dar o nosso melhor nesta vida, mesmo que não consigamos atingir os objectivos propostos, estamos a criar condições mais favoráveis para as encarnações seguintes. Quando Arjuna pergunta no śloka VI, 37, da Bhagavad-Gītā : “Qual é o destino do fiel que se desvia do caminho da meditação e da fé, necessário para alcançar a perfeição yóguica, devido a uma mente desenfreada, Ó Kṛṣṇa?”, é com um certo alívio que ouvimos na resposta de Kṛṣna que quem pratica o bem nunca será prejudicado, mesmo que possam ser necessárias várias vidas, para alcançar a Libertação (mokṣa) (6).
Existem diferentes tipos de karman, o sañcitakarman é o karman progressivamente acumulado pelas acções passadas mas que ainda não começou a gerar frutos ou consequências, o āgāmi karman é relativo às acções que serão realizadas no futuro e o prārabdhakarman, às acções efectuadas no passado e que já começaram a gerar os seus frutos. Segundo diversos textos sagrados (7), o homem que atinge a libertação durante a sua vida (jīvanmukti), consegue destruir o seu sañcitakarman, no entanto o prārabdhakarman nunca pode ser inteiramente apagado e o jīvanmukti tem de assistir ao seu desenrolar sem apego e sem gerar novo karman, independentemente do tempo que isso possa demorar.
Todas as acções que tenham a sua fonte nos kleśa geram consequências e karman, as acções justas ou virtuosas gerando consequências agradáveis e as acções que partem de uma má intenção gerando consequências desagradáveis e dolorosas. Assim, mesmo se as boas acções aproximam os seres humanos da Libertação (mokṣa), elas não o libertam do karman e enquanto for gerado mais karman, seja ele qual for, o homem continua prisioneiro do ciclo de renascimentos (saṃsāra).
Yogasūtra II.14
ते ह्लादपरितापफलाः पुण्यापुण्यहेतुत्वात्॥१४॥
te hlāda paritāpa-phalāḥ puṇya-apuṇya-hetutvāt ॥14॥
«As suas consequências serão o prazer ou a dor causado pela virtude ou pelo vício, respectivamente.».
Obviamente, ao falarmos de boas ou más acções, devemos ter em conta que não estamos a falar das noções de bem e de mal que nos são transmitidas pelas religiões em geral, às quais estão associados os conceitos de recompensa e punição, que prendem o ser humano em sentimentos como a culpabilidade ou a superioridade. Falamos aqui essencialmente de Dharma, (Ordem Cósmica), através do qual se define a acção justa.
Para nós ocidentais, a ideia de que cada acção é portadora de consequências não nos é estranha. Possuímos os nossos provérbios, reflexo desta mesma realidade, como “quem semeia ventos colhe tempestades” ou “cá se fazem, cá se pagam”, no entanto, numa cultura em que não existe o conceito de reencarnação, a lei do karman pode surgir como problemática e muitas vezes injusta. De uma maneira geral, a maioria das pessoas não se lembra das suas vidas anteriores e para quem não tem a intuição profunda e certeza interior de que as existências se sucedem ao longo dos ciclos cósmicos, tendo em conta que a memória é apagada, pode ser particularmente difícil compreender porque é que coisas más acontecem a pessoas boas ou inversamente.
Para os hindus, a Lei do Karman é uma excelente ferramenta capaz de nos ajudar a tomar consciência da nossa ignorância metafísica (avidyā) e incentivar-nos a uma procura da nossa essência divina. Ao observarmos, por exemplo o Rājayoga sintetizado por Patañjali, podemos observar que o ponto de partida para a sua prática são precisamente os princípios éticos e as regras de conduta, Yama e Niyama. Esses princípios que são válidos para todos os seres humanos e que se espera que o yogin leve à perfeição no seu caminho para a iluminação, são comuns a todas as vias espirituais. Para toda e qualquer pessoa que aspire à libertação ou à iluminação, características como as preconizadas por Patañjali são fundamentais e a Lei do Karman é certamente uma forma de ajudar a manter a consciência da importância dessa ética, dessa moral. Se, como foi referido mais acima, sentirmos que cada acto que cometemos vai ter uma influência em todo o nosso ser e na nossa natureza profunda, agora e no futuro, então a necessidade de agir correctamente vai transformar-se numa questão de sobrevivência.
A partir do momento em que temos consciência que cada acção é, em si, uma fonte de consequências, e que o karman enraizado nos kleśa gera sempre mais sofrimento, surge imediatamente a dúvida sobre qual será a acção justa e como agir sem gerar mais karman, distanciando-nos assim das causas do sofrimento. Para quem procura ir mais longe na sua busca espiritual, estas questões tornam-se cruciais.
A mim surgia-me regularmente a questão sobre a “compatibilidade” entre a vida mundana que vivo (acção) e a vida espiritual a que aspiro (desapego) e, por vezes, perguntava-me se todos os esforços feitos ao quotidiano para manter o alinhamento e a integridade espiritual seriam vãos, se a única solução para viver uma vida espiritual seria através de uma dedicação exclusiva à meditação, ao retiro espiritual, ao silêncio interior e exterior… Como encontrar o equilíbrio se, mesmo no caso de uma eventual prática exclusiva da meditação, tendo em conta a nossa natureza humana, é-nos fisicamente impossível não agir? Pelo simples facto de existirmos, agimos! O sangue que circula no nosso corpo, o ar que entra e sai dos nossos pulmões, os nossos pensamentos e emoções, tudo o que sustém e alimenta a vida, tudo isso é acção. Kṛṣna lembra-nos precisamente isso nos śloka III, 4 e 5 da Bhagavad-Gītā, dizendo-nos :
“Não se alcança a liberdade do cativeiro do Karma pela simples abstenção do trabalho.
Ninguém alcança a perfeição meramente abandonando o trabalho, porque ninguém pode ficar sem acção, mesmo por um momento. Tudo no universo é dirigido pela acção e está em atividade constante pelas forças da natureza.”
Se, de cada vez que agimos, estamos a gerar mais karman, mesmo que seja bom, podemos questionar-nos sobre a nossa capacidade e a possibilidade de, um dia, sermos capazes de queimar todo o karman já armazenado pelas nossas acções passadas, sem gerar novo karman ao mesmo tempo…
Conseguimos entrever a solução, um pouco mais à frente, no śloka III, 8 e 9, onde surge a mesma afirmação, mas de uma forma um pouco mais completa, permitindo-nos compreender um pouco melhor qual é a base da acção justa e empurrando-nos subtilmente para o conceito de Dharma, de Ordem Cósmica e Acção Justa :
“Portanto, realiza acções virtuosas, pois a acção é melhor que a inacção!
Permanecendo inactivo, não é sequer possível manter o próprio corpo!
Os seres humanos são limitados pelo trabalho [Karma] que não é realizado como serviço abnegado [Seva, Yajña]. Portanto, realiza as tuas acções como oferendas a Deus, para o bem da humanidade, permanecendo livre dos apegos aos frutos das acções, ó Kaunteya!”
Kṛṣṇa mostra a Arjuna que ele não tem outra solução senão agir, mas que o deve fazer segundo as suas prescrições e, no fundo, as prescrições do Divino não são outra coisa senão as Leis do Dharma. O conceito de karman e o conceito de dharma estão intrinsecamente ligados e a compreensão de um depende obrigatoriamente da compreensão do outro. Quando se fala de karman, o conceito de dharma está sempre implícito e vice-versa e ambas estas Leis, integradas e aplicadas à prática, sempre foram de extrema importância para o meu svādhyāya (conhecimento de si mesmo, através do estudo dos textos sagrados) e a minha prática do Yoga e constituem, juntamente com os Yama/Niyama, as fundações da minha integridade pessoal e percurso espiritual, cimentando a consciência da Responsabilidade Pessoal, em cada um dos meus pensamentos, cada uma das minhas palavras e cada uma das minhas acções e inevitáveis consequências.
A Bhagavad-Gītā é, de todas as escrituras sagradas da tradição hindu, a que mais se debruçou sobre a elucidação de todas estas questões sobre o karman, fornecendo aos hindus, mas também a qualquer pessoa disposta a receber os seus ensinamentos, o principal texto de base do Karmayoga, estabelecendo uma importante distinção entre a acção propriamente dita (no sentido mais alargado do termo) e o interesse na acção e nos seus frutos, explicando a diferença entre o agir e o não-agir. Kṛṣna diz a Arjuna, no śloka II, 47 :
“Considera apenas o trabalho e não a recompensa por ele! Que o teu motivo para as acções não seja a recompensa! Mas tampouco te entregues à inactividade!”
Com a minha Intenção, o meu Consentimento e a minha Autoridade em Deus, assim avanço, dia após dia. Dentro das minhas capacidades, aplico estes ensinamentos ao quotidiano, ao mesmo tempo que coloco a minha Força e a minha Coragem nas mãos de Deus, para que possa, a cada instante, ser conduzida à sua melhor utilização, para servir o Bem Comum.
Nada é mais precioso à minha Alma e Coração que a possibilidade da Libertação da Consciência para TODOS e sinto profundamente que a compreensão e a realização das Leis Universais, do Dharma e do Karma, é indispensável para a expansão da nossa consciência e espiritualidade e, por isso, partilho convosco as minhas próprias integrações resultantes do meu caminho espiritual ao longo dos anos. Apesar de a maior parte deste texto ter sido extraído da minha tese final apresentada no final da formação de Professores de Yoga, em 2012 (já lá vão mais de dez anos!), esta Sabedoria situa-se além do espaço e do tempo, e pode ser sentida e integrada em cada uma das nossas células, a partir do momento em que são reconhecidas as distorções que lhe foram sendo sobrepostas ao longo dos milénios por inúmeras adaptações e interpretações e que, como de costume, acolhemos apenas aquilo que ressoa connosco…
Assim, peço-vos, usem o vosso Discernimento, acolham apenas o que ressoa convosco e deixem que a Verdade faça o seu justo caminho, ou seja, de dentro para fora, segundo a Ordem Divina e dentro do Tempo Divino!
Com Amor e Reverência, Rita
1. Jean Herbert et Jean Varenne. Vocabulaire de l’Hindouisme, éd. Dervy-Livres, col. «Mystiques et Religions», Paris, 1985, p. 57 : «karman, nt. (Rac. KAR) : parfois orthographié karma. 1. Acte rituel. 2. Tout acte, action, œuvre. 3. Travail activité. 4. Conséquence des actes. 5. Reliquat des conséquences bonnes ou mauvaises à subir pour les actes passés et déterminant les incarnations successives. ».
2. Swâmi Vivekânanda (trad. REYMOND, Lizelle et HERBERT, Jean). Les Yogas pratiques, éd. Albin Michel, col. Spiritualités Vivantes, Paris, 2005, p. 15.
3.Ver https://sanskrit.inria.fr/DICO/19.html#karman .
4.Alexandre Astier. Comprendre l’Hindouisme éd. Eyrolles, Paris, 2007, p. 64.
5.Eliot Deutsch. Qu’est-ce que l’Advaita Vedanta?(trad. Sylvie Girard), éd. Les Deux Océans, Paris, 1980, p. 86.
6.Ver Bhagavadgītā VI, 40 a VI, 45.
7.Eliot Deutsch. Qu’est-ce que l’Advaita Vedanta? (trad. Sylvie Girard), éd. Les Deux Océans, Paris, 1980, p. 84. Cf. Brahma-sūtra III, 3, 27 e V, 1, 15 e Bṛhad-āraṇyaka Upaniṣad, I, 4, 7.